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Foi lento e tardio o engajamento das universidades brasileiras na formação de engenheiros de automóveis e, mais ainda, no desenvolvimento de tecnologias e novos projetos específicos para o setor. À exceção dos órgãos militares de ensino – os pioneiros IME e ITA –, somente em meados da década de 70 começaram a se fazer conhecidos trabalhos e pesquisas mais metódicos e de maior fôlego na área.
Mesmo no âmbito do desenho industrial foi lento o aprendizado do país: apenas em 1962 foi criada a primeira escola superior de design, no Rio de Janeiro, que formaria uma geração de projetistas de qualidade, vagarosamente se desdobrando em novos cursos de desenho de produto e programação visual, geralmente vinculados a escolas de arquitetura.
Preeminência máxima, neste pobre cenário, teve a FEI e seu curso de engenharia operacional, reestruturado por Rigoberto Soler, que desde os primórdios aliou teoria e prática ao dia-a-dia dos seus alunos. Tornando rotineira a construção de protótipos operacionais como trabalhos de final de curso, produziu uma longa série de veículos criativos e originais, iniciada pelo hoje histórico X-1, pela primeira vez apresentado no VI Salão do Automóvel, em 1968.
É evidente que contribuições esporádicas da Academia sempre ocorreram, como na remota década de 30, com a participação de alunos e professores da Escola Polytechnica de São Paulo no projeto de blindados para lutar contra o governo federal na dita Revolução Constitucionalista de 32. Além de trens e lanchas, foram preparados 13 automóveis, caminhões e tratores, alguns com torre giratória, cada um deles recebendo um código. As transformações necessárias, efetuadas pelas firmas paulistanas J. Martin & Cia. e Fundições e Oficinas Gerais Viúva Craig & Cia. Ltda., compreendiam a construção de novas carrocerias com chapas de aço rebitadas e o reforço das suspensões. Assoalhos eram de madeira e em alguns casos, por não se dispor de chapas grossas, utilizava-se chapas finas duplas entremeadas de lã de carneiro. Todos os chassis eram norte-americanos: automóveis e caminhões Chevrolet, Ford e McCormick Deering, tratores de rodas Ford Fordson e de esteiras Caterpillar. Destes, apelidados Tanks Paulistas, foram construídas três unidades, uma delas equipada com lança-chamas em torre giratória, com alcance de 100 m, quatro metralhadoras laterais e um holofote para operações noturnas. Apesar da imponência, todos os veículos apresentavam baixíssima mobilidade e péssimas condições para os tripulantes.
Naquela época a Polytechnica de São Paulo já se encontrava envolvida com o estudo de motores de combustão interna, encarregada que foi pelo governo do Estado, em 1930, de estudas as “dificuldades de ordem mecânica” eventualmente trazidas pelo uso do álcool etílico como carburante. Esta não era uma idéia nova, por sinal: vinha do início do século, e o álcool já chegara até a ser explorado comercialmente como combustível no final dos anos 10.
Em 1918, com o objetivo de absorver o excedente de produção de cana-de-açúcar provocado pelo final da I Guerra Mundial, o governo de Pernambuco oficializou o álcool produzido localmente como combustível para a frota pública do Estado. No ano seguinte, professores do curso de química industrial do Recife desenvolveram uma mistura à base de álcool e éter à qual deram o nome Motogás. Em 1921 o Brasil já produzia 150.000 litros de álcool motor derivado de cana, motivando o Ministério da Agricultura a criar na Capital Federal a EECM – Estação Experimental de Combustíveis e Minérios. A iniciativa deu origem à adaptação de vários veículos para o uso de álcool, diversos deles postos à prova em situações-limite (para a época), como a corrida da Gávea de 1923 e a viagem entre o Rio de Janeiro e São Paulo no ano seguinte. Em 1927 a Usina Serra Grande, em Alagoas, lançou seu combustível à base de álcool, batizado Usga. Diversos outros fabricantes, em paralelo, desenvolveram e lançaram combustíveis com marca própria, como Azulina, em Pernambuco, Motorina, na Paraíba, e Cruzeiro do Sul, em São Paulo. Em 1929 cerca de 500 automóveis utilizavam álcool combustível no Nordeste, somente a Usga distribuindo 450.000 litros por mês através de 13 bombas instaladas em Pernambuco e Alagoas.
No restante do país, todavia, ainda carente de escolas de engenharia, nada acontecia com relação a veículos automotores, com breves e raros interregnos – em função de demandas emergenciais, como a II Guerra – de busca de soluções paliativas – como, no âmbito das escolas de agronomia, a tentativa de melhorar o rendimento dos ineficientes aparelhos de gasogênio.
Esta situação de quase indigência técnica em um país de bacharéis seria identificada pelo primeiro Governo Vargas – contra o qual o Estado de São Paulo se rebelara. Com ele, a estrutura de ensino superior foi profundamente modificada e o país chegou ao início da década seguinte com sua primeira universidade federal (Universidade do Brasil, criada em 1937), com três institutos militares (Escola Técnica do Exército, de 1933, Instituto Militar de Tecnologia e Centro Técnico da Aeronáutica, ambos de 1941) e com o ensino técnico e comercial reestruturados. Foi nestas instituições militares, pois, que teve início a formação de engenheiros especializados em mecânica de automóveis; também foi este o berço da moderna indústria de material bélico nacional. Ainda que mais ocupado com questões aeroespaciais, seria o CTA quem, na década de 70, desenvolveria a atual tecnologia do motor a álcool – inclusive na versão flex, então chamada motor reversível –, preparando o primeiro automóvel do país exclusivamente alimentado com este combustível.
No campo civil, embora o desenvolvimento da engenharia automotiva tenha por uma década permanecido quase exclusividade da FEI, algumas Faculdades ensaiaram se aprofundar na área, elaborando propostas inovadoras, muitas vezes materializadas em maquetes e protótipos. Uma das pioneiras foi a Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, que ainda em 1963 desenvolveu o projeto do primeiro veículo a colchão de ar do país, iniciativa do professor Urbano Ernesto Stumpf – que dez anos depois, no CTA, seria o responsável pelo projeto do motor a álcool. Também de São Carlos veio o Griffon: apropriando-se de conceitos aeronáuticos no projeto da carroceria, foi exposto no XII Salão do Automóvel, em 1981.
À exceção da FEI, porém, até recentemente o projeto de veículos completos e a construção de protótipos com motor de combustão interna não eram prática freqüente, situação só transformada no século corrente, como será visto adiante, após a criação de competições esportivas para universitários e de ralis internacionais de economia. Nesse interregno, motivada pelas diversas “crises de petróleo” sofridas pelo planeta desde os anos 70, a Academia se dedicou preferencialmente a questões de cunho energético e, como desdobramento, ecológico-ambiental. A preocupação se universalizou e hoje chegam, de vários estados do país, propostas de propulsão elétrica e híbrida, desde concepções convencionais, desenvolvidas como exercício escolar, até projetos sofisticadas, utilizando energia solar e hidrogênio como fontes de energia.
Pesquisas em torno do uso do hidrogênio vêm da década de 70, aprofundadas por instituições tão distantes como UFRN, UFMT e Unicamp. Na primeira, em Natal, a experiência foi iniciada com um pequeno motor de 3 cv, evoluindo em 1976 para um Chevrolet estacionário retirado de uma picape C-10. Em Cuiabá, três anos depois, um velho Aero-Willys foi a cobaia do projeto. Apesar dos resultados iniciais favoráveis, os dois foram descontinuados por limitação de recursos. A Unicamp – mais rica, contando com o apoio oficial do governo paulista e, desde 2002 do Ministério da Ciência e Tecnologia – manteve sua equipe estruturada, em um trabalho contínuo de mais de vinte anos. Partindo de um sistema de alimentação protótipo montado em uma Kombi Volkswagen, em 1983, sua linha de pesquisa evoluiu para o seguinte modelo: produção do hidrogênio a partir do álcool etílico com conversão no interior do próprio veículo; uso do dispositivo eletroquímico chamado “célula de combustível” para transformar a energia química do H² em eletricidade; e aplicação prática na configuração híbrida, utilizando em paralelo célula de combustível e baterias.
Em 2004 a UFRJ iniciou um projeto um pouco diferente. Coordenado pela Coppe, contava com o apoio da Petrobrás para desenvolver um ônibus urbano híbrido, a baterias e célula de combustível, com hidrogênio obtido a partir de gás natural. Ao contrário da proposta da Unicamp, o hidrogênio seria extraído em equipamentos de maior porte instalados em postos de abastecimento, externamente ao veículo, portanto. Os veículos teriam 300 km de autonomia (aumentada para 500 km no segundo protótipo – apresentado em 2012 na conferência Rio+20, trazendo carroceria Busscar). Eletra, Caio e WEG também participam do projeto, para o qual foi proposta (e não utilizada) uma bela carroceria para 109 passageiros, desenhada pelo carioca Gustavo Guerra, que com ela venceu o 6º Michelin Challenge Design, em 2006.
Em 2022 o ônibus da Coppe despertaria especial atenção da administração municipal de Maricá (RJ). Maior arrecadadora de royalties do petróleo do país no ano anterior e tendo como meta até 2038 operar uma frota de ônibus urbanos 100% não poluente, a Prefeitura firmou convênio com a Universidade, mediante o qual a Coppe prepararia três diferentes protótipos para teste na cidade: um 100% elétrico e dois híbridos, um a hidrogênio e outro a etanol. Ao final dos testes, caso a opção escolhida se materialize em encomenda para substituição dos 125 ônibus diesel atuais, seria instalada uma fábrica para produção local dos veículos.
(Um segundo projeto de ônibus urbano com célula de combustível, desenvolvido sob encomenda da EMTU/SP, se encontra em testes operacionais desde julho de 2009.)
Quanto à construção de carros pelos próprios estudantes, esta só veio a se tornar uma atividade popular e democrática a partir de 1995, quando foi organizada a primeira competição esportiva brasileira de mini bajas para universitários, organizada pela SAE Brasil e patrocinada pela Petrobrás, nos moldes do evento existente nos EUA desde 1973. Os carros, necessariamente projetados, executados e pilotados pelos estudantes, não seguem um padrão, embora todos devam apresentar estrutura tubular envolvente, do tipo gaiola, e aptidão para trafegar fora de estrada. Somente o motor é igual para todos os competidores: Briggs & Stratton (importado) de um cilindro, quatro tempos, refrigerado a ar e 10 cv. De forma a incentivar a criatividade dos alunos, um mesmo carro só pode participar de duas competições seguidas. A primeira prova, em 1995, contou com oito equipes, cada uma com um carro, sendo sete de São Paulo (capital e interior). O sucesso do evento foi instantâneo e o crescimento de inscritos exponencial: à segunda competição compareceram 18 veículos, e à terceira, em 1997, 49 equipes de 26 universidades de sete estados; em 2003 já seriam 74 veículos de 49 escolas e 12 estados. Pelo regulamento, os carros devem se submeter a 15 etapas de avaliação estática e dinâmica e a uma prova enduro de cerca de quatro horas. Os primeiros classificados têm direito de participar da competição anual internacional, nos EUA ou Canadá.
O Mini Baja SAE Brasil vem revelando talentos em todo o país, e embora FEI e Engenharia de São Carlos mantenham a liderança no número de vitórias (sete e seis, respectivamente, nas 17 edições realizadas até 2011), têm freqüentemente que se defrontar com equipes fortes e carros bem preparados de estados com menor (ou nenhuma) tradição na indústria mecânica. Foi assim em 1998 e 2000, quando a equipe da UFRN venceu a competição com o carro CarKará; com ele (em 1998), pela primeira vez na história a prova mundial foi vencida por um concorrente não norte-americano. Em 1997 e 1999 os campeões nacionais foram os carros Tubarão e Komiqueto, do CEFET/MG, e em 2014 o Mangue Baja 1, da UFPE.
Depois da quebra da invencibilidade dos EUA na competição mundial, a FEI repetiu o feito da equipe potiguar por mais três vezes, em 2004, 2007 e 2008. Os carros vêm se sofisticando, e hoje muitos deles dispõem de suspensão independente nas quatro rodas, transmissão automática CVT e eletrônica embarcada. Repetindo o que ocorre nos EUA, o sucesso da Mini Baja levou à criação de um evento paralelo, em 2004, a Fórmula SAE, para monopostos com motor de até 610 cm3 (hoje subdividida nas categorias Combustão e Elétrica). Suas duas primeiras edições foram vencidas pela EE de São Carlos.
Categoria esportiva de outra ordem são as provas de economia e eficiência energética, também estas mobilizando fortemente a Academia. Situação típica de atuação interdisciplinar integrada, para elas são desenvolvidos veículos únicos, nos quais são postas à prova questões tecnológicas complexas, testados materiais sofisticadas de baixíssimo peso e aplicados finos conceitos de aerodinâmica e design. A principal prova nacional, a Maratona Universitária da Eficiência Energética, foi instituída em 2004 pelo fabricante de autopeças Dana com o nome Danatureza. Inspirada na tradicional prova francesa Shell Eco-Marathon, premia os protótipos que obtiverem melhores resultados em três categorias: gasolina, etanol (a partir de 2010) e elétrica. Nos primeiros casos o objetivo é o menor consumo de combustível, enquanto que nos veículos elétricos as equipes devem percorrer a maior distância possível com a carga da bateria-padrão fornecida pela organização do evento.
Na primeira competição disputaram equipes de sete universidades, só com carros a gasolina, geralmente equipados com motores de motocicleta de 125 a 160 cm3 e 4,0 a 5,5 cv. A prova foi vencida pela Universidade Mackenzie (SP), com consumo de um litro para 151,2 km – bom resultado para novatos, porém muito abaixo ainda do recorde europeu de 750 km/l. Na categoria “melhor projeto” foram escolhidos três carros da FEI: X-11, X-12 e X-13. Na maratona seguinte a Mackenzie voltou a vencer, com o carro Evolution e a excelente marca de 369,5 km/l.
A evolução dos modelos foi rapidíssima, e o vencedor da terceira competição, o carro CEA-M2, da UFMG, alcançou o desempenho de 598,8 km/l. Construído em plástico reforçado com fibra de carbono, com seu motor de 35 cm3 e 1,5 cv pesava somente 35 kg. Pela primeira vez houve disputa na categoria elétrica, vencida pelo FEI X-17, também em fibra de carbono e reduzidíssimo Cx de 0,05, com 29,13 km percorridos. Em 2007, os vencedores de ambas as categorias utilizaram materiais alternativos e de baixo custo nas carrocerias: fibras e resina de bananeira, no carro a gasolina da Unicamp, e bambu no elétrico da Universidade Federal de Santa Maria (RS). Até então disputadas na pista de provas da GM em Indaiatuba, pela primeira vez as provas foram levadas para o kartódromo de Interlagos, resultando em um rendimento relativamente pior dos vencedores, dado o relevo mais ondulado da nova pista: 367,05 km/l e 24,35 km percorridos.
O Brasil coleciona algumas vitórias internacionais também nesta área. Maior destaque tem a Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, que desde 1994 participa, na categoria Design, da Shell Eco-Marathon. Já naquele ano, com o Sabiá 1, obteve o Prix d’Honneur du Design. Entre 2000 e 2009 três novos prêmios chegariam: o especial de design para equipe estrangeira, com o Sabiá 3; o veículo mais bem concebido da Maratona (Sabiá 5); e o 1º lugar na categoria Design Inovador, na edição americana da Maratona (Sabiá 6). Com o Sabiá 4, em 2005, pela primeira vez a UEMG concorreu seriamente nas provas de economia; contando com o suporte técnico da UF de Itajubá, seu carro atingiu índice de consumo de 480 km/l.
Ainda que menos comuns, experimentos com energia solar para tração também vêm sendo realizadas por universidades, com destaque para a USP, que em 1995 construiu o segundo carro solar do país. O primeiro, apelidado The Banana Enterprise, foi realizado no início da década de 90 pelo empresário Eduardo Bomeisel e outros quatro ex-alunos do ITA, chegando a participar do World Solar Challenge, na Austrália, em 1993. Com dois metros de largura por seis de comprimento e capacidade para duas pessoas, pesava pouco mais de 260 kg; tinha três rodas de alumínio e aço, estrutura em fibra de carbono e alumínio de alta resistência, painel fotovoltaico com 1.100 células, dez baterias de chumbo-ácido e um motor elétrico de alta eficiência de 4 cv. Chamado Poli-Solar, o modelo da USP tinha formato diferente, porém seguia na essência as características do anterior: mesmas dimensões, três rodas, dois lugares e 1.100 células. Com o nome Citizen Eco-Drive, também ele participou, em 1996, do torneio australiano. Os dois veículos estão hoje de posse da Universidade, que os aprimora e com eles participa de mostras e competições.
Voltado-se para o transporte público, em 2016 a Universidade Federal de Santa Catarina apresentou no 12o Salão Latino-Americano de Veículos Elétricos, em São Paulo, um protótipo de ônibus urbano 100% elétrico alimentado por energia solar. Denominado eBus, 0 projeto contou, entre outros, com a participação da Mercedes-Benz (fornecedora do chassi O 500-U), Marcopolo, WEG (fabricante do motor de 400 kW) e Eletra (integradora dos sistemas elétricos). Em 2021 o veículo iniciou fase de teste operacional no transporte público de Jaraguá do Sul (SC).
Nova área de pesquisa que começa a ser objeto de interesse da Academia é a do carro autônomo, sem motorista. Pioneira no país, no caso, foi a USP de São Carlos, que em 2010 adaptou para tal fim um carrinho de golfe, ao qual chamou Carina 1 (sigla para Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma). Agora já não mais se trata de desenvolver um veículo completo, mas um sistema eletrônico adaptável a automóveis de série. Na USP, o projeto vem sendo conduzido pelo Instituto de Ciência Matemáticas e de Computação. Simplificadamente, o sistema consiste de uma câmera montada na dianteira do veículo (responsável pela “leitura” da sinalização horizontal e vertical), um aparelho emissor de laser no teto (que identifica obstáculos e movimentos em torno do carro) e um computador de bordo (para analisar os dados e tomar decisões). O segundo carro de testes (Carina 2, utilizando um Fiat Palio Adventure como “mula”) saiu às ruas de São Carlos em outubro de 2013; supõe-se ter sido o primeiro da América Latina a experimentar a tecnologia. O conceito foi também aplicado a dois caminhões Scania G 360 6×4, cedidos pelo fabricante com base em convênio firmado em 2013; desde 2014 os veículos vem sendo testados no interior do campus de São Carlos.