SANTA MATILDE |
A Companhia Industrial Santa Matilde foi fundada em 1916, com o objetivo de explorar minério de manganês na região de Conselheiro Lafaiete (MG), onde mais tarde instalou planta industrial. Empresa de capital nacional, já em 1926 ingressou no ramo ferroviário, dando início à manutenção e reforma de vagões. A partir de 1946, no imediato pós-guerra, também passou a fabricar vagões e carros ferroviários em sua segunda unidade, em Três Rios (RJ), do qual seria um dos principais fornecedores no país.
Na década de 60 o setor ferroviário começou a perder importância nas políticas públicas brasileiras, em contraste com o crescimento acelerado da indústria automobilística e a prioridade cada vez maior conferida às rodovias, situação que perduraria, com raros intervalos, até os dias de hoje. A drástica redução de investimentos nas vias férreas e na renovação da frota de material rodante levou as empresas do setor a buscarem a diversificação, tendo a Sta. Matilde sido pioneira nesse campo, se lançando à produção de implementos agrícolas, em 1959, e de grandes estruturas metálicas no ano seguinte. Seus primeiros equipamentos na linha agrícola foram grades rebocadas Rome, fabricadas sob licença da norte-americana Rome-Plow.
A entrada no ramo automotivo se deu em 1968, quando iniciou a fabricação de colheitadeiras automotrizes, sob licença da também norte-americana J I Case, que abandonava a exportação de máquinas agrícolas para o Brasil, transferindo para a Sta. Matilde, mediante acordo firmado em 1967, sua rede de revendas na América Latina e os direitos de fabricação local dos equipamentos. (Anos depois as duas maiores concorrentes da Sta. Matilde na área ferroviária – Mafersa e Cobrasma – também buscariam na indústria automobilística a saída para a retração de mercado, em ambos os casos, no entanto, recorrendo ao segmento de ônibus.) No caso da Sta. Matilde, foram inicialmente produzidos três modelos de máquinas para a colheita de soja, trigo, arroz e milho – S.M. 960, 1000 e 1200 -, em grande parte exportadas para os países vizinhos.
As colheitadeiras, que até então vinham sendo fornecidas com o nome Case, em 1970 passaram a assumir em definitivo a marca Sta. Matilde. As máquinas tiveram excelente acolhida, sendo as mais vendidas na área rizícola do Rio Grande do Sul devido à sua agilidade e peso reduzido, chegando a serem produzidas 700 unidades na safra de 1980. Embora tivessem rendimento menor do que os grandes equipamentos da concorrência, requeriam menor manutenção e custavam até ¼ do preço daqueles.
O esforço de diversificação continuou (com rapidez excessiva, como se veria mais tarde), tanto pela entrada em novos segmentos (tubos e componentes metálicos, defensas rodoviárias, grandes estruturas, peças de plástico reforçado com fibra de vidro, guinchos elétricos e componentes para convés, containers) como pelo lançamento de novos modelos na linha de máquinas agrícolas. Assim, em 1976 a empresa já produzia (e exportava com sucesso), colhedoras de forragem rebocadas e equipamentos para desmatamento. (Com a ampliação da gama de produtos a Sta. Matilde decidiu especializar suas duas plantas, a unidade mineira – que viria a ser fechada em 1984 – se destinando à indústria ferroviária e de tubos e a do Estado do Rio aos demais segmentos.) Antes mesmo de fixar-se nos novos mercados, porém, a empresa já enveredaria por outros caminhos. Dois deles – ambos complexos, ambos no setor automobilístico – tiveram início num mesmo momento: o desenvolvimento e lançamento de uma linha de tratores e um automóvel esportivo.
A introdução dos tratores no catálogo da Sta. Matilde pode ser considerada uma decorrência natural da sua participação, havia mais de quinze anos, como fornecedora de implementos agrícolas e colheitadeiras mecanizadas. Sua entrada no segmento quase chegou a acontecer por vias indiretas: em 1975, quando prospectava sua instalação no país como fabricante, a francesa Renault cogitou a ela se associar na produção de tratores agrícolas. Logo depois a Sta. Matilde adquiriu os projetos e direitos de fabricação dos pequenos tratores Brasitália, empresa brasileira que se encontrava praticamente desativada, desta forma abreviando o lançamento de sua nova linha de produtos.
Assim, já em 1978, além das colheitadeiras S.M. 1000 e 1200 (a 960 já fora retirada de catálogo), a linha de máquinas agrícolas da empresa contaria com quatro modelos de tratores: três sobre rodas – 300CR, 300CRC (versão com bitola estreita para uso em cafezais) e 400CR – e o trator de esteiras 300C. Equipadas com motores diesel Perkins, as máquinas tinham duas características únicas na produção nacional: caixa com reversão imediata de cada uma das seis marchas, sem necessidade de parar o veículo, e bomba hidráulica de fácil manutenção e baixíssimo custo (1/10 da concorrência, segundo a empresa).
Em 1982 a linha agrícola, que passara por pequenas modificações estéticas e assumira cor padrão verde (em lugar do vermelho anterior, que as confundia com as máquinas Massey Ferguson), era composta pelos modelos seguintes: trator de esteiras 370C (motor Perkins de três cilindros e 44 cv e câmbio de quatro marchas reversíveis), tratores de pneus 400CR e 500CR (3,4 e 3,8 t; 65 e 80 cv, três marchas à frente e ré, bloqueio do diferencial e direção hidrostática) e colheitadeiras 1200 e 5105 (a primeira para arroz irrigado e a segunda para grãos secos, ambas com motor MWM de seis cilindros e 110 cv). Todas as máquinas permaneceriam em produção até o início da década seguinte.
A empresa, contudo, perdia fôlego no setor. A crise econômica que quase paralisou a indústria brasileira no início dos anos 80, aliada à entrada de novos fabricantes e à modernização da tecnologia da concorrência pouco a pouco expulsou suas máquinas do mercado. Em 1984, embora o setor amargasse 70% de ociosidade, a empresa ainda apostava no crescimento, acreditando no aumento de 54% na sua produção de colheitadeiras e 400% na de tratores, com elevação de participação de 25 para 45% no faturamento. Também havia planos de lançar mais um modelo de trator. Nada de novo aconteceu, porém, permanecendo marginal a produção de máquinas agrícolas até a grande crise que atingiria a empresa no final da década.
O segundo importante lançamento dos anos 70, pelo qual a Sta. Matilde viria a ficar célebre entre os amantes dos automóveis, foi o esportivo SM 4.1. Elegante fastback 2+2, se diferenciava da imensa maioria dos “fora-de-série” nacionais por sua base mecânica: em lugar da quase universal opção por motores traseiros Volkswagen refrigerados a ar, o SM portava componentes mecânicos do Chevrolet Opala, inclusive seu motor mais potente (a motorização inicialmente especificada, da Alfa Romeo, não foi autorizada pelo fabricante italiano). O carro foi desenvolvido a partir de 1975, desenhado por Ana Lídia Pimentel, filha do Presidente da empresa, tendo como responsável pela construção do protótipo o piloto Renato Peixoto.
O SM foi apresentado na Expo-77, em São Paulo, e oficialmente lançado em 1978, no XI Salão do Automóvel. O carro tinha chassi-plataforma de aço estampado e galvanizado a quente, estrutura metálica também galvanizada, carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro, motor dianteiro de 4.093 cm3, com seis cilindros em linha e 171 cv, caixa manual com quatro marchas, tração traseira, suspensão independente à frente e eixo rígido atrás com molas helicoidais e freios a disco nas quatro rodas (do Opala, na frente, e do VW Brasília, atrás).
O interior se pretendia de luxo: tinha ar condicionado de série, revestimento de couro, cintos de segurança de três pontos, vidros ray-ban laminados, janelas de acionamento elétrico, antena embutida no teto, desembaçador traseiro e limpa-brisa com temporizador. Registre-se que diversos desses itens eram pouco comuns nos carros brasileiros da época e pelo menos um deles – um estojo de ferramentas completo – jamais seria oferecido por outro fabricante.
A opinião da imprensa especializada se dividiu na primeira avaliação do carro, efetuada em maio de 1978: parte elogiou a estabilidade, frenagem e posição de dirigir (Autoesporte); parte criticou fortemente as mesmas estabilidade e frenagem, além da vedação termo-acústica (4 Rodas); por outro lado, todos consideraram insuficientes o acabamento (inclusive das peças de fibra) e diversas soluções de projeto do habitáculo. Supomos que tal discrepância tenha se dado em função da diferença de desempenho entre os carros testados – o que, é evidente, não deveria ocorrer, indicando insuficiente controle de qualidade na linha de produção. (Este seria um problema recorrente na Sta. Matilde, inclusive na área ferroviária, como se verificaria poucos anos depois, quando uma série de trens de subúrbio fornecidos à RFFSA apresentariam graves problemas estruturais.)
Um ano depois, a maior parte das falhas de projeto registradas nos testes iniciais foi objeto de revisão, tendo sido alterados, além de detalhes aerodinâmicos da carroceria, todo o acabamento interno, bem como o painel e inúmeros comandos e controles na cabine. Nova prova, efetuada por 4 Rodas em julho de 1979, registrou os avanços obtidos, inclusive no desempenho dinâmico, não tendo sido observados, dessa vez, problemas de estabilidade ou frenagem. Apesar do custo elevado (o SM foi, durante muito tempo, o carro mais caro do Brasil), 238 unidades foram vendidas nos dois primeiros anos.
Em 1980 o SM recebeu sua primeira reestilização, embora restrita à traseira, que ganhou linhas mais suaves e perdeu os ressaltos laterais à tampa da mala, dando ao para-brisa uma inclinação um pouco menos acentuada. Alguns outros acertos foram feitos: novas maçanetas semi-embutidas, para-choques semi-retráteis, lanternas traseiras maiores, retrovisor esquerdo elétrico, rasgos de ventilação adicionais dos lados dos faróis de neblina. Naquele ano passou a ser oferecido como opção o motor Chevrolet de quatro cilindros a álcool, aspirado ou turbo, este se diferenciando dos demais modelos por uma grande entrada de ar aberta sobre o capô (poucas unidades destas versões seriam vendidas, sendo a produção suspensa três anos depois). Em 1981 o carro ganhou direção hidráulica e, opcionalmente, transmissão automática de três velocidades importada. Na oportunidade, foi finalmente corrigido um grave erro de projeto: a mudança do ponto de fixação dos cintos de segurança, transferido dos bancos para a estrutura da carroceria. Em 1980 a divisão de automóveis produziu 147 carros, respondendo por 3,8% do faturamento da empresa; no ano seguinte, em plena crise econômica, o total ficou reduzido a 57 unidades, nível médio que se manteria pelos quatro exercícios vindouros.
Em 1983 o SM passou por suas maiores modificações estilísticas e, além de perder os vincos acentuados nas laterais e na traseira, passou de hatch para um “quase” três-volumes. A mala aumentou de tamanho e foi “reorganizada” internamente (até então a bagagem disputava espaço com bateria, estepe, macaco e bolsa de ferramentas): a bateria passou para o vão do motor e o pneu foi montado na vertical – até então ficava solto no piso da mala; permaneceram soltos os outros itens. Também as lanternas traseiras foram alteradas e os para-choques cresceram lateralmente, alcançando as caixas de roda dianteiras e traseiras; os quebra-ventos foram eliminados. Na dianteira, a modificação mais visível foi a nova posição da placa, agora no meio do para-choque; também na traseira a placa mudou de lugar, subindo do para-choque para ser alojada entre as lanternas. O conjunto painel-console foi redesenhado e o tanque de combustível ficou maior. No ano seguinte foi lançado o SM conversível, sempre com a mecânica Opala de seis cilindros. O automóvel vinha de fábrica com duas capotas, uma retrátil de lona e uma rígida, de fibra de vidro.
Ainda em 1984, em meio à crise que levaria ao fechamento de sua planta de Conselheiro Lafaiete, ao mesmo tempo em que lançava o SM conversível e fazia planos de duplicar a participação no mercado de máquinas agrícolas, a Sta. Matilde mergulhou ainda mais na diversificação. Em mais uma incursão no setor automobilístico, deu início à fabricação de ônibus urbanos com motores Otto para uso de metano, gás natural ou álcool. Os primeiros exemplares foram construídos no âmbito de um programa de desenvolvimento tecnológico com apoio financeiro da EBTU, sendo chassi e carroceria de projeto e fabricação próprios. Seu relacionamento com a GM, fornecedora dos motores do esportivo SM, a levou a também escolher para o ônibus um motor Chevrolet, no caso a unidade de 4,8 litros a álcool e 143 cv – a mesma utilizada nos caminhões canavieiros Chevrolet A-70 -, devidamente adaptada para o uso de gás por um consórcio de empresas especializadas do setor. O veículo tinha chassi tipo escada com motor traseiro e suspensão a ar, caixa de cinco marchas, freios pneumáticos a disco de duplo circuito e direção hidráulica. A carroceria, que atendia às especificações Padron, apresentava estrutura de aço revestimento de alumínio, máscaras dianteira e traseira de fibra de vidro e duas portas largas. Meio ano depois o ônibus também passou a ser fornecido com opção de motor diesel MWM.
Em paralelo com esse desenvolvimento, a empresa iniciou o projeto de um trólebus, no qual seria utilizado novo sistema de suspensão pneumática, a ser fabricada pela própria empresa sob licença da austríaca ÖAF; o processo, contudo, não foi concluído. Em 1985, ao vencer licitação para o fornecimento de ônibus para a CTC – Companhia de Transportes Coletivos do Estado do Rio de Janeiro, a Sta. Matilde partiu para a produção de carrocerias convencionais com motor dianteiro, portas estreitas e sem os detalhes de segurança e conforto dos modelos padron, fornecendo-as para montagem sobre chassis de fabricação de terceiros.
A aventura da empresa no setor, porém, teve vida curta: o desinteresse do empresariado pelos ônibus padron e pela propulsão a gás, aliado a problemas de produto – deficiências primárias, tais como defeitos estruturais da carroceria, peso excessivo do ônibus e baixa potência do motor Otto escolhido – retiraram a Sta. Matilde do mercado antes de terminar o ano de 1986.
Em contraste com esse insucesso, os esportivos SM continuavam carreira de relativo êxito, tendo atingido, exatamente em 1986, seu recorde de produção, com 207 unidades. O ano de 1987 começou com novas alterações de estilo, especialmente na dianteira, com novo formato da grade e (apenas no cupê) faróis retangulares do VW Santana. Ao mesmo tempo se planejava a modernização do conversível e se iniciava o projeto de um sedã de quatro portas de alto luxo, para competir com o Opala Diplomata como carro de representação. Mas nesse momento a empresa já vivia os primórdios da longa crise da qual não se salvaria. E como um presságio do que estava por vir, apenas 25 unidades do SM seriam fabricados naquele ano, minguando para somente oito em 1988.
A Sta. Matilde era uma empresa familiar, presidida havia décadas por seu principal acionista, que com mão-de-ferro sempre imprimiu à companhia seu estilo próprio, personalista e autoritário. Um coquetel de circunstâncias desfavoráveis levou à crise, tanto por razões externas (histórica inconstância do mercado ferroviário, desistência de encomendas pelo governo, protesto de títulos) quanto pelos muitos problemas internos (qualidade irregular do produto, graves defeitos de fabricação, falta de planejamento nas ações, verticalização desordenada, má gestão financeira, administração familiar centralizada e não profissional). Assim, o que começou como uma greve de operários da divisão ferroviária contra a demissão em massa e pelo pagamento de direitos trabalhistas transformou-se, em agosto de 1987, numa paralisação de mais de quatro meses. Criado o círculo vicioso “falta de capital de giro” / “não pagamento de salários” / “greve” / “ausência de produção”, impossível de ser rompido dada a intolerância da empresa e a recusa a negociar com trabalhadores e credores, teve início um processo agônico que duraria mais de 15 anos, com períodos alternados de produção e inoperância.
Em 1991 a Sta. Matilde propôs ao governo de Minas Gerais reabrir a unidade de Governador Valadares, transformando-a em fábrica de carrocerias de ônibus, sob condições: que o Estado garantisse reserva de mercado e que os operadores de ônibus contribuíssem com o capital de giro da empresa. Evidentemente a iniciativa não vingou. O Sindicato dos Metalúrgicos de Três Rios, por decisão judicial, passou a administrar a indústria a partir de então, situação que perdurou até 2000, quando o antigo proprietário reconquistou, também judicialmente, o direito aos bens. O imbroglio jurídico trouxe mais dificuldades para o processo, pois desde 1998 as instalações industriais de Minas e do Estado do Rio estavam arrendadas a terceiros. Durante todo esse período as variadas linhas de produtos eram circunstancialmente acionadas, tendo sido fabricadas algumas unidades de estruturas, máquinas agrícolas e automóveis, em escala cada vez mais reduzida.
O SM permaneceu sendo fabricado em limitadíssima quantidade até 1995. Os poucos exemplares produzidos a partir de 1992 receberam nova frente, na qual, pela primeira vez, a grade dianteira faceava a carroceria. Como um canto de cisne, em 1997 foi construído um último exemplar, sob encomenda e supervisão do comprador. O resultado foi uma grosseira carroceria com saias integradas aos para-choques e traseira muito modificada, declaradamente “inspirada” no alemão Mercedes-Benz SLK; o motor de três litros veio do Chevrolet Omega.
Ao todo, foram produzidos 937 automóveis SM, 76 dos quais conversíveis. Em outubro de 2005 a Santa Matilde teve a falência decretada.