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PRESIDENTE | galeria

Maior – e última – das várias tentativas mal sucedidas de criação de uma indústria nacional de automóveis de grande série mediante a venda de cotas ao público. Sonho do empreendedor paulistano Nelson Fernandes, que pouco antes construíra um clube campestre e um hospital pelo mesmo sistema de subscrição de cotas, a IBAP – Indústria Brasileira de Automóveis Presidente foi fundada em outubro de 1963, com planos de produzir três modelos de veículos: um furgão leve, um carro popular com motor de pequena cilindrada (entre 300 e 500 cm3) e um automóvel de luxo.

A campanha de vendas de Cédulas de Propriedade (segunda as quais o adquirente tornava-se sócio da empresa) teve início um ano depois, com significativo sucesso, em pouco tempo alcançando duas dezenas de milhares de cotas adquiridas (400 mil era a meta da IMAP). A produção estimada seria de 350 carros por dia, em 1968 – meta absolutamente irrealista, em se considerando ser esta a quantidade então fabricada pela Volkswagen, líder inconteste do mercado na época.

Em paralelo, a empresa adquiriu um terreno em São Bernardo do Campo (SP), onde começou a construir seu galpão industrial. Somente aí, porém, já adiantada a venda de títulos, a Presidente seriamente passou a mobilizar meios para projetar os veículos e construir os primeiros protótipos. Talvez surpresa pela complexidade técnica e gerencial que a empreitada envolvia, tentou ganhar tempo revendo seus planos e priorizando a preparação de um veículo de mais rápida concretização. A escolha recaiu sobre o modelo mais caro (em lugar do furgão e do popular, como era sua intenção), alegadamente pelo papel de “representação” que o mesmo poderia ter, assim comprovando cabalmente a capacidade executiva da empresa. Esta, aparentemente, não era a verdade completa. A fabricação de um carro de baixo preço, envolvendo maiores volumes de produção, exigia investimentos de muito maior vulto, e para eles a IMAP não estava preparada. Ao modelo escolhido, um sedã com duas e quatro portas com motor traseiro, conceitualmente muito semelhante ao “compacto” norte-americano Chevrolet Corvair 1961, foi dado o nome Democrata.

Os primeiros cinco protótipos, apresentados em 1966, tinham quatro portas e carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro, certamente moldada a partir do próprio Corvair – como indicam as linhas das laterais e o para-brisa dianteiro. Apesar de ter recebido faróis retangulares, uma grade decorativa na dianteira, capô plano e para-brisa traseiro menos envolvente, seu parentesco com o carro da Chevrolet era evidente. O sedã Democrata de quatro portas não passou da fase de “carro de demonstração”. De nacional tinha apenas a carroceria, já que as instalações industriais onde seriam produzidos os órgãos mecânicos ainda não haviam sido concluídas e a empresa sequer colocara pedidos de componentes junto à indústria brasileira de autopeças. Painel de instrumentos e todos os órgãos mecânicos do modelo de quatro portas vieram do Corvair, assim como o motor de seis cilindros opostos refrigerado a ar.

Em agosto de 1966 a empresa reuniu a imprensa para apresentar o protótipo do motor definitivo, “especialmente concebido para o carro“. Projetado na Itália, era um V6 refrigerado a água com comando de válvulas no cabeçote, dois carburadores, coletor de admissão pré-aquecido, coletor de exaustão arrefecido a água, 2.498 cm3 e 120 cv. Fundido em alumínio, tinha bloco e carcaça da transmissão integrados na mesma peça. A versão final do Democrata também começava a ser definida, mantendo a configuração três volumes com motor traseiro, porém agora em modelo cupê de duas portas e cinco lugares.

O novo carro – anunciado como Grã-Turismo – foi mostrado no início de 1968, ainda com carroceria monobloco de fibra de vidro (segundo a IBAP, a versão seriada seria construída em chapas de aço), porém com desenho totalmente novo, escolhido mediante concurso público (de autoria de José Maria Ramis Melquizo, egresso do Departamento de Estilo da Willys). A grade dianteira tinha agora uma função, por trás dela se localizando um radiador de óleo (o radiador de água ficava junto ao motor). Comparado com a produção brasileira da época, o Democrata se destacava claramente em modernidade tecnológica e atualidade de estilo: um único automóvel nacional estava à sua altura – o caro FNM JK.

Com 4,68 m de comprimento e 1,39 de altura, tinha estrutura tubular com sub-chassi traseiro, câmbio manual de quatro marchas sincronizadas, suspensão independente nas quatro rodas (barras de torção e triângulos sobrepostos na dianteira; semi-eixos oscilantes, braços longitudinais e molas helicoidais na traseira), freios a tambor e sistema elétrico de 12 V com alternador. Chegou a ser cogitada a instalação de freios a disco, ainda praticamente inexistentes no país, mas a idéia foi abandonada por razões de custos. Quanto à suspensão dianteira, previa-se a substituição das barras de torção por molas helicoidais.

Para melhor aproveitar o espaço disponível, o tanque de combustível ganhou um inusitado formato em T, encaixando-se sob o console e abrindo mais espaço no porta-malas. No interior, bancos individuais reclináveis, volante esportivo e alavanca de mudanças no console central. O painel trazia instrumentos circulares e revestimento em madeira. Apesar de sua relativa sofisticação técnica, a IBAP pretendia vender o Democrata a preço de carro popular, simploriamente alegando que a simples ausência de pagamento de royalties e assistência técnica a matrizes estrangeiras e a inexistência de repasse de comissões à rede de revenda reduziriam o preço em mais de 50%.

Após a apresentação do cupê, a IBAP liberou algumas informações técnicas sobre seus dois “próximos lançamentos“: o popular, também com motor traseiro de quatro cilindros, 998 cm3 e 53 cv, caixa de quatro marchas, freios hidráulicos e carroceria de aço; e o utilitário, com a mesma mecânica, porém com capacidade para 800 kg de carga ou nove passageiros, tração nas quatro rodas com diferencial autoblocante e vão livre de 25 cm.

Lançado o programa e definido o projeto, foi contratado para implantá-lo o italiano Fernando Beraldin, até então responsável pela construção das carrocerias de fibra de vidro e montagem final dos esportivos Willys Interlagos. Não havia, contudo, nem um engenheiro na folha de pagamentos da companhia para viabilizar planos industriais tão ambiciosos. Mas a realidade se mostrava ainda pior: além de possuir um único molde para a fabricação de carrocerias, que limitava a produção a somente 20 unidades por mês, o galpão de São Bernardo do Campo não dispunha de nenhum equipamento industrial capaz de fabricar os diversos conjuntos mecânicos exigidos pelo carro. Segundo a empresa, os motores seriam inicialmente importados, devendo ser nacionalizados após a compra da FNM (em fase de privatização pelo governo militar), quando também as carrocerias passariam a ser estampadas em aço. Mais um projeto temerário de Nelson Fernandes, o negócio foi negado pelo Ministério da Indústria, responsável pela gestão da estatal.

Este foi apenas mais um dos obstáculos enfrentados pela IBAP, vítima, desde sua criação, de intensa campanha negativa aberta pela imprensa, com destaque para os quatro anos de raivosa oposição da revista 4 Rodas, iniciada ainda em março de 1964. De origem obscura, a cruzada destrutiva estendeu-se ao Legislativo de SP, ao Judiciário e à Câmara Federal, culminando na instauração de uma CPI. Em meio a esse ambiente adverso, a empresa procurava sobreviver. Moldou cerca de três dezenas de carrocerias, completou cinco protótipos do cupê e intensificou as campanhas nacionais de divulgação. Mas o cerco se fechava.

Em agosto de 1968, enquanto expunha dois carros na galeria do Hotel Nacional, em Brasília, o Geimec negou-lhe autorização para a importação subsidiada de máquinas. Um carregamento de 500 motores italianos foi interceptado pela Alfândega, ali permanecendo anos (e, no final, vendidos como sucata). Tantas notícias negativas desgastaram o nome da empresa e trouxeram descrédito para o projeto. Dos 87 mil cotistas que até aquele momento haviam adquirido títulos, 37 mil voltaram atrás. Por fim, sempre em 1968, após ação de fiscalização, o Banco Central determinou a intervenção na IBAP. Subordinados a mais uma ação judicial, seus dirigentes foram condenados por “coleta irregular de poupança popular sob falsa alegação de construir uma fábrica de automóveis“. A indústria foi fechada no final do ano e os bens arrestados pela Justiça. Vinte anos depois o Supremo Tribunal Federal reconheceria ter sido indevida a intervenção.

Analisando à distância os planos da IBAP, é fácil perceber-se sua baixa viabilidade. O esquema escolhido pela empresa – a venda de cotas como forma de captação de recursos –, utilizado à larga pelo capitalismo norte-americano nos anos de sua formação, já havia se mostrado inviável no Brasil, país com arcabouço jurídico fraco para operações desse tipo, onde não havia sequer consórcios para a compra de carros e a caderneta de poupança não havia ainda se popularizada como forma de investimento. Ainda que não se desconheça a má vontade do governo e de parte da imprensa com relação ao projeto, não há como negar o caráter amadorístico do empreendimento e – apesar do entusiasmo e dedicação – o pouco preparo técnico e gerencial de seus administradores, em especial no que toca o projeto dos veículos e sua industrialização.

Muito tempo passaria até que se voltasse a falar da Presidente. Exatos 20 anos depois, em 1988, quando a fábrica de São Bernardo do Campo foi por fim desinterditada, a revista Oficina Mecânica publicou impactante reportagem mostrando o que dela restara: um galpão semidestruído, moldes sob escombros e grande número de carrocerias sem acabamento ao relento. Pouco depois, José Luiz Finardi, um mecânico de São Bernardo do Campo, arrematou as carrocerias, amontoou-as em um terreno junto à sua oficina, restaurou e vendeu o primeiro carro, um cupê vermelho, e iniciou a reconstrução do segundo, verde-metálico.

Em 2006, Álvaro Negri, da mesma cidade, comprou três das 24 carrocerias restantes e iniciou campanha pública, pelo portal Mercado Livre, pela venda e restauração das demais. À margem desse esforço de renascimento dos poucos exemplares construídos desse mítico automóvel, espantosamente sobreviventes a décadas de abandono, houve quem desenterrasse os editoriais de 4 Rodas, velhos de 40 anos, brandindo termos acusatórios como “farsa“, “desonestidade“, “falta de lisura” e “má fé“. Em contrapartida, também foram muitos os que defenderam a ousadia da IBAP. Um depoimento, em particular, poderia sintetizar a relevância do projeto: Flávio Gomes, lembrando em seu blog o obscurantismo do regime militar, que recrudescia em 1968, e sua participação no episódio, ressaltava o papel de projetos como este como ato de afirmação nacional, acentuando ser “preciso dar valor a essas iniciativas e compreender seu significado histórico“.

Nelson Fernandes faleceria em janeiro de 2020, aos 88 anos.





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