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A FORD ABANDONA O BRASIL

Prepotência é a palavra de ordem

fevereiro 2021

 

 

Essa empresa quer incentivos fiscais que as nossas [empresas] não têm.

O dia que achar que o Brasil não serve mais,  

 vai embora e nem dá tchau.”

(Olívio Dutra, Governador do Rio Grande do Sul, em 1999)

 

 

 

No dia 11 de janeiro último, sem qualquer negociação prévia com trabalhadores, autoridades estaduais ou federais, a Ford comunicou o encerramento imediato e definitivo de toda sua produção no país. Meses depois a empresa completaria 102 anos de instalação no Brasil.

 

Comunicado oficial

A notícia foi acompanhada da campanha virtual “A Ford Não Vai Sair do Brasil“, vinculada ao informe “Ford Avança na Reestruturação da América do Sul“. O texto utilizava um raciocínio simplório para justificar a decisão, expresso na seguinte ordem de ideias:

A corporação “está anunciando uma reestruturação de suas operações na região“, o que “permitirá ter um modelo de negócios ágil e sustentável no Brasil e América do Sul“; o novo modelo de negócios se apoiará nos “pontos fortes globais” da empresa, focados em “SUVs, picapes e veículos comerciais“.

E seguia, como que falando do óbvio para um ouvinte infantil: “Como você sabe, a indústria automotiva global está passando por um processo de transformação impulsionado por novas e emergentes tecnologias em serviços conectados, eletrificação e veículos autônomos, com demandas dos consumidores e itens regulatórios remodelando o mercado“- argumentos estes, aliás, sem qualquer ligação lógica com os “pontos fortes globais” antes citados.

Como não poderia deixar de ser, a pandemia da Covid-19 foi citada como causa adicional, ampliando “os desafios do negócio, com persistente capacidade ociosa da indústria e redução das vendas na América do Sul, especialmente no Brasil“.

E, simples assim, concluía: “diante desse cenário, a Ford encerrará as operações brasileiras de manufatura nas plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Troller (Horizonte – CE)“.

Por fim, hipocritamente, como se assim estivessem compensadas as evidentes perdas para o país, o texto ressaltava que “a Ford continuará ativamente presente no Brasil e na América do Sul com sua ampla Rede de Concessionários, (…) além de oferecer (…) picapes e veículos comerciais, provenientes da Argentina, Uruguai e outros mercados“.

 

Em suma: de importante fabricante com quase 102 anos de história no país, a Ford passará a ser mera importadora – o que causará, por sinal, impactos de outra ordem, também brutais, pois a empresa já determinara que sua rede de concessionárias deveria encolher drasticamente, caindo de 283 para 120 lojas.

Em entrevista coletiva, depois de louvar o “dedicado time da América do Sul [pelos] progressos significativos na transformação das nossas operações, incluindo a descontinuidade de produtos não lucrativos e a saída do segmento de caminhões“, o Presidente da Ford América do Sul afirmou que “a continuidade do ambiente econômico desfavorável e a pressão adicional causado pela pandemia deixaram claro que era necessário muito mais para criar um futuro sustentável e lucrativo“. Segundo o Diretor-Executivo da Ford Motor Co., estas foram decisões “difíceis, mas necessárias, para a criação de um negócio saudável e sustentável” – “saudável e sustentável” para a empresa-matriz e seus acionistas, por suposto.

Obviamente, nada foi referido acerca da demissão de mais de 5.000 empregados e das muitas centenas de milhões de Reais transferidas pelo Governo Federal e por administrações municipais e estaduais para a empresa, ao longo de décadas, a título de benefícios e incentivos fiscais; nada se disse sobre o enorme volume de empréstimos concedidos pelo BNDES (somente após 2002 foram mais de R$ 3,5 bilhões) – em grande parte ainda não reembolsados, nem sobre a longa sequência de erros estratégicos da administração central, com efeitos perniciosos tanto nos EUA como no Brasil, e sua histórica prepotência sobre a filial, ano após ano desconsiderando o ambiente cultural, econômico e legal brasileiro.

É evidente que, menos ainda, foram sequer lembradas as consequências de seus atos sobre a nação: desindustrialização, aumento do peso das importações na balança comercial, crise de emprego e degradação econômica local – assuntos que, a seu ver, não lhe dizem respeito.

Deixando de lado todas estas questões vitais, a seguir nos concentremos em dois pontos: os argumentos utilizados pela Ford para sua fuga do país e – intrinsicamente ligada a isso -, a coleção de equívocos estratégicos colecionada pela empresa ao longo de sua história recente.

 

Argumentos

Traduzindo: por “modelo de negócios ágil e sustentável” leiamos simplesmente “lucrativo para a empresa”; por “pontos fortes globais” – ou “SUVs, picapes e veículos comerciais” – entendamos como “segmentos com maior retorno econômico”.

Inicialmente, cabe a questão: ao abandonar mundialmente a produção de automóveis “de passeio”, não poderá a Ford estar incorrendo no próprio suicídio? Concentrar-se em SUVs e picapes poderia eventualmente valer para os EUA, com a fixação do mercado local em veículos mastodônticos, mas certamente não valerá para o resto do planeta. Ademais, SUV é hoje um modismo: até quando durará? Nenhum grande fabricante até hoje arriscou tanto: não será este mais um erro estratégico da Ford? Como dispensar os mercados europeu e brasileiro, em nosso caso um dos maiores do mundo, ainda com reduzidíssima relação carro/habitante? Com toda a certeza não será com caros modelos importados que a empresa recuperará sua posição no mercado.

Mais adiante, o comunicado lembra que a Ford oferecerá ao país “um portfólio empolgante, conectado e cada vez mais eletrificado“. Quando poderá acontecer isto? Certamente não a curto prazo, pois é sabido que, entre as grandes indústrias do setor, a Ford é hoje a mais atrasada em eletrificação; literalmente, vem “correndo atrás do prejuízo”.

Covid-19, “continuidade do ambiente econômico desfavorável” e “persistente capacidade ociosa” foram citadas como as razões determinantes para a retirada do país. Ocorre que toda a indústria aqui instalada sofre dos mesmos males, mas absolutamente nenhuma tomou decisão sequer parecida. Ao contrário: basta lembrarmos das maciças inversões recentes, por exemplo, da GM, Volkswagen e Fiat – não por acaso líderes nacionais em produção e vendas.

Críticos do chamado “custo Brasil” buscam dar razão à Ford, justificando-a por “não suportar impostos tão altos e tanta regulamentação“. Julgando com isso reforçar seus argumentos, lembram que também Audi e Mercedes-Benz há pouco encerraram a produção de automóveis no país. Não existe, contudo, comparação possível entre os dois casos: enquanto que Audi e Mercedes-Benz produziam veículos de luxo montados em pequena escala com componentes majoritariamente importados – o que decididamente não é a situação da Ford -, ambos são modelos “marginais” na linha de produtos dos respectivos fabricantes – o primeiro, um carro de nicho da gigante Volkswagen e, o segundo, um “luxo” do maior produtor brasileiro de caminhões.

As causas da decadência da Ford brasileira, para muitos, são de ordem diversa: advêm da política autoritária, centralizadora e muitas vezes truculenta da Administração Central de Dearborn, EUA, cujas decisões equivocadas acabaram por deixar a filial brasileira à mingua, vulnerabilizando-a a ponto de nem sequer ter o que oferecer para se manter no mercado.

 

Equívocos

Tentamos aqui traçar uma breve cronologia histórica dos últimos 65 anos da Ford brasileira, registrando os principais momentos críticos vividos pela empresa, geralmente fruto da visão autocentrada da matriz, desinteressada pela realidade local.

1956: criação do GEIA – Grupo Executivo da Indústria Automobilística; a Ford norte-americana reage às exigências do Governo Federal quanto aos índices mínimos de nacionalização, alegando a “impossibilidade de fundição de blocos de motor em países tropicais” (um ano antes a Mercedes-Benz do Brasil já havia fundido o primeiro bloco de motor da América Latina); a Ford só aderiu ao GEIA no prazo limite.

1957: picape F-100 e caminhão médio F-600 a gasolina com motor V8, primeiros veículos nacionalizados pela Ford, conceitualmente em nada diferindo dos modelos desde os anos 40 importados pela marca.

1961: primeiro caminhão Ford com motor diesel (desde 1956 a Mercedes-Benz produzia caminhões médios a diesel no país).

1963: a Ford brasileira ainda era a única empresa do setor a não dispor sequer de um Diretor, contando apenas com um Gerente Geral, dependente da Administração Central para qualquer decisão; somente na década de 80 a empresa teria um Presidente de nacionalidade brasileira.

1967: Galaxie – primeiro automóvel nacional da Ford, enorme modelo com motor V8, tipicamente norte-americano, – longo, largo, pesado e de consumo elevado -, quando era evidente a tendência brasileira de adotar modelos leves e médios de origem europeia. (A linha Galaxie foi produzida até 1983.)

1967: ciente de que a concorrência se preparava para lançar novos carros pequenos ou médios, a Ford adquire o controle da Willys, que à época desenvolvia com a Renault francesa um moderno automóvel com tração dianteira – o futuro Corcel.

1968, Salão do Automóvel: GM lança Opala (origem Opel), VW lança 1600, logo seguido da Variant, e Ford lança Corcel e LTD – versão mais cara e luxuosa do Galaxie.

1973, véspera da Segunda Crise do Petróleo: lançamento do automóvel Maverick (de porte intermediário entre Corcel e Galaxie); ainda que pesquisas de opinião mostrassem a preferência pelo Taunus alemão, a Ford escolheu mais um modelo norte-americano de concepção convencional; para reduzir custos, equipou-o com o ultrapassado motor Willys de seis cilindros em linha, velho de trinta anos. (O Maverick seria retirado de linha em 1979, ano da Terceira Crise do Petróleo.)

1981: com planos de fabricar seu “carro mundial” Escort no Brasil, a matriz cobra do Governo Federal redução de conteúdo nacional obrigatório, de 85 para 50%: “com o atual índice mínimo de nacionalização exigido pelas leis brasileiras (…) seria impossível produzir, aqui, nosso carro mundial“; com a recusa do Governo, a empresa declara “adiado” o projeto, logo retomando-o, na iminência do lançamento do modelo globalizado da GM.

1982: lançamento do Monza, “carro mundial” da GM.

1983: lançamento do Escort.

1984: construção de fábrica de motores diesel para caminhões e tratores, desativada apenas seis anos depois.

1985: lançamento da atualíssima linha de caminhões Cargo, de origem europeia, totalmente a diesel, os primeiros da marca com cabine sobre o motor; o lançamento foi motivado pelo rápido crescimento da novata Volkswagen Caminhões e sua gama de veículos com cabine avançada basculante (os primeiros caminhões médios Mercedes-Benz, de 1958, já possuíam cabine sobre o motor, ainda que fixas).

1986: saindo de um período ascendente, com lançamentos importantes e sucesso de mercado, Detroit obriga a forte inflexão na política de investimentos para o Brasil; diante de dificuldades conjunturais, em lugar de investir e reposicionar-se no mercado, a matriz opta por assinar Acordo de Cooperação com a VW e “buscar sinergias” com seu maior concorrente; é criada a Autolatina, operação que se revelaria quase mortal para a Ford brasileira: dos 20,8% do mercado interno ocupados em 1984, sua participação ficaria reduzida a meros 8,2%, em 1996 (conheça mais detalhes em Autolatina).

1989: em direção contrária à demanda do mercado por carros pequenos (todos os concorrentes há anos já possuíam seu modelo) a Ford lança mais um sedã médio, Verona.

1993: obcecada pelo mote “carro pequeno não dá lucro“, a Ford retarda ao máximo o lançamento de um carro 1.0, colocando-o no mercado três anos depois da pioneira Fiat e atrás de todos os outros fabricantes – ainda assim utilizando o corpo de um carro médio, um Escort de geração anterior.

1994: com a extinção da Autolatina e apesar da violenta perda de mercado, em lugar de investir num carro pequeno, exigência de sua rede de concessionárias, a Ford passa a priorizar a venda de importados.

1995: duas décadas depois da concorrência, a Ford tem o seu primeiro carro pequeno – ainda que um modelo importado, só nacionalizado no ano seguinte (chegando com  60% de conteúdo nacional, o mínimo exigido pela legislação).

1996: enquanto a produção nacional cresce 14,1% e a VW avança 23,4%, Ford recua 33% no ano.

1997: prenunciando o abandono paulatino das atividades fabris, Ford desativa suas fundições e terceiriza o serviço; em 2001 também seria terceirizada a fabricação de cabines de caminhões.

1997: picape leve Courier; bem projetada e com maior capacidade de carga da categoria, a picape foi retirada de linha em 2013, sem sucessora, em segmento disputadíssimo; praticamente “abandonada” pela Ford, não passou por qualquer atualização significativa no período.

1997: Ford anuncia nova fábrica em Guaíba (RS), atraída pelas benesses oferecidas pelo Governo Estadual.

1999, janeiro: desvalorização do Real; nova crise na Ford, causada pelo baixo índice de nacionalização de Ka e Fiesta e pela dependência de modelos pequenos importados.

1999, março: nova administração do Rio Grande do Sul questiona benefícios concedidos à Ford e à GM para construção de fábricas no Estado; GM entra em acordo com a administração pública mas a Ford se nega a negociar; em entrevista recente o Governador cita números: “O PIB do Rio Grande era de 92 bilhões de reais. A arrecadação (…) era de 8,5 bilhões. Como é que um Estado que tem essa estrutura de carência pode estar repassando recursos volumosos para a Ford, que tem esse faturamento de 380 bilhões?“; Ford desiste do projeto mas imediatamente obtém benefícios ainda maiores da Bahia e para lá se transfere, em um dos mais criticados e menos éticos processos de negociação de benefícios públicos que já se presenciou no setor (veja detalhes a seguir).

1999, julho: Ford anuncia fechamento da fábrica do Ipiranga, São Paulo; a linha de produção de caminhões foi transferida para São Bernardo do Campo.

1999, dezembro: queda de 40,5% na produção, versus redução nacional de 14,5%.

2000: VWCO ultrapassa Ford e ocupa o segundo lugar em caminhões.

2000: Iveco inicia produção de vans e furgões no Brasil, compartilhando o projeto com Fiat, Citroën e Peugeot; Renault nacionaliza seus modelos em 2001, enquanto que a pioneira Mercedes-Benz desde 1996 importava os seus da Argentina; dispondo na Europa da tradicional e conceituada linha Transit, a Ford jamais demonstrou intenção de disputar o mercado brasileiro, em contínuo crescimento, com um veículo aqui fabricado.

2001: Ford chega a 6,6% de participação, o nível mais baixo em sua história no país.

2002, janeiro: Ford e GM entram em crise global, motivada pela perda de mercado “em casa”; “para que a empresa volte a ser competitiva“, Administração Central anuncia profunda reestruturação, envolvendo corte de 35.000 empregos, 1.600 na América do Sul.

2002, maio: fábrica baiana é inaugurada e lança o Novo Fiesta; oito anos depois de extinta a Autolatina, tem início a lenta recuperação Ford.

2003: EcoSport, primeiro utilitário esportivo fabricado no país, também em Camaçari.

2004: recorde de produção, embora mantendo a discreta participação de 12% em vendas; para crescer, a rede de concessionárias e executivos da filial brasileira demandam um modelo “de entrada”, categoria já oferecida por todos os concorrentes (e não atendida pelo exíguo Ka); reafirmando que “carros baratos não dão lucro“,  a matriz determina que a fábrica brasileira se concentre nos carros pequenos, mas não nos de entrada.

2005: Camaçari opera em três turnos, acima da capacidade máxima.

2006: caminhões médios da antiga Linha F saem de linha; aquisição da Troller.

2007: Novo Ka, lançado como modelo “de entrada”.

2011: caminhão Cargo espera 25 anos para receber sua primeira cabine-leito.

2012: ainda líder, EcoSport chega à segunda geração, totalmente alterada; muitos novos SUVs nacionais surgiriam a partir de então; sem mudanças significativas a partir daí, o pioneiro EcoSport perde mercado e fica reduzido a mero figurante no segmento.

2013: primeiros caminhões extrapesados da Ford, sempre na linha Cargo.

2014: fábrica de motores em Camaçari e novo motor 1.0 de três cilindros; novo Ka hatch e sedã Ka+, projetados no Brasil (para reduzir custos de produção, os dois carros utilizaram a plataforma do Fiesta, o que se revelou um erro comercial: mais espaçoso, custando menos e trazendo mesma mecânica e conteúdo, o Ka acabaria por inviabilizar o Fiesta).

2018, dezembro: Ford termina 2018 em quarto lugar em vendas de automóveis, com 9,2% de participação, tendo o Ka como o terceiro carro mais vendido do país; no segmento de caminhões, terminou em segundo lugar em semileves e médios e terceiro em leves e semipesados.

2019, janeiro: Ford anuncia o encerramento definitivo da fábrica de São Bernardo do Campo, decisão tomada em função do  “prejuízo” de US$ 678 milhões nas operações sul-americanas no ano anterior; “para o retorno à lucratividade sustentável das operações“, também decide deixar de atuar no segmento de caminhões – a despeito de se situar em posição invejável no mercado e dispor de completa linha de modelos, atualizada e muito competitiva; fabricado em São Bernardo, New Fiesta sai de linha; 1.700 trabalhadores serão demitidos (700 em Camaçari) (veja matéria específica em Novidades).

2021, janeiro: deixada à inanição, dispondo de somente três modelos em linha, a Ford abandona o país definitivamente, suspendendo toda a produção, com encerramento imediato das fábricas de Taubaté e Camaçari.

 

Pela cronologia acima, percebe-se que é estratégia da Ford ser reativa, sempre estressando a discussão ao limite e só assumindo uma decisão próximo do ponto do rompimento. A obtenção da máxima lucratividade a curto prazo norteia a maior parte de suas ações, quer decidindo pela implantação de um empreendimento, quer por sua desativação, independentemente das consequência externas que produza. Assistimos a isto em inúmeras ocasiões.

Olhando retrospectivamente, parece que a perspectiva de se retirar do país jamais saiu do radar da Ford. Porque nunca ocorreu, só agora? Acontece que qualquer que tenha sido a tendência política de nossos governantes e o regime em vigor – nacionalista, ditadura militar, socialdemocrata, de esquerda – sempre houve instâncias decisórias e de planejamento conscientes do papel multiplicador da indústria automobilística, de sua importância econômica e laboral e da alta relevância como elemento de desenvolvimento do país. Assim, em momentos críticos, todos lograram frear a ânsia de lucro a qualquer custo, ainda que com danos sociais e econômicos graves, sabendo impor limites e condições e cobrar compromissos. No entanto, “quem espera sempre alcança”, e por fim chegou o dia: país acéfalo, liberalismo sem regras, nenhum apego ao planejamento, desprezo por programas de desenvolvimento, total insensibilidade social. O terreno ficou livre e a Ford soube aproveitá-lo.

A história da Ford mundial, contudo, não acaba aqui. O futuro dirá se abrir mão do enorme potencial do mercado brasileiro e colocar em segundo plano o europeu foi apenas “uma decisão difícil mas necessária” ou se, mais uma vez, a empresa ajuda a cavar o poço onde se enterra lentamente.

 

A página da Ford em LEXICAR foi publicada em dezembro de 2014. A seguir reproduzimos alguns de seus trechos – por vezes quase premonitórios – que, além de detalhar e melhor esclarecer pontos até aqui comentados, poderão servir de síntese e fechamento desta Nota.

Idiossincrasias

A Ford [apresenta] algumas idiossincrasias, certamente heranças do estilo autoritário e centralizador de Henry Ford, que manteve sua empresa sob rígido controle pessoal enquanto viveu (o Grupo Ford é ainda hoje uma empresa familiar, embora com administração parcialmente profissionalizada). Em 1963, a filial brasileira da Ford era a única empresa, em toda a indústria automobilística nacional, a depender totalmente da matriz, não dispondo sequer de um Diretor, mas apenas de um Gerente Geral, que se reportava aos EUA para qualquer assunto que exigisse decisão (…). A Ford era, também, a campeã do setor na remessa de royalties e dividendos para o exterior, sendo responsável, entre 1957 e 1961, por 46% desta rubrica (Willys e VW – as duas maiores –, juntas, não alcançavam 28%): a empresa se gabava, em 1960, de ter recebido US$ 31 milhões do Brasil, entre 1957 e 60, a título de remessa de lucros e taxas de serviço, correspondendo a quase duas vezes e meia o total gasto na nacionalização de seus caminhões (US$ 13 milhões).”

Interferências da Matriz

Embora 1985 tenha sido um ano ainda melhor do que o anterior em vendas, a Ford se retraiu em 1986, assumindo uma postura inesperadamente austera. Em abril de 1985 o Presidente da filial brasileira fora deslocado para novas funções e seu estilo dinâmico e agressivo voltado para constantes lançamentos foi trocado por posturas mais rígidas e política de produto conservadora. No final do ano, informações reservadas davam como certo que a matriz estaria dificultando a aprovação do programa de investimentos para 1986, fato confirmado em janeiro do ano seguinte por alto dirigente de Ford norte-americana, ameaçadoramente declarando “dois motivos para que a Ford não tenha projetos de investimento no Brasil: a inflação e o controle de preços“. Esta radical inflexão na política da empresa para o Brasil se mostraria absolutamente equivocada – e quase fatal – a médio prazo: em 1987 a marca perderia definitivamente o terceiro posto entre as maiores do país, atropelada pela impactante chegada da Fiat (com forte efeito sobre todos, por sinal, inclusive sobre a aparentemente imbatível VW); mais grave ainda: sua participação na produção nacional, que alcançara o pico de 20,8%, em 1984, despencaria continuamente até chegar a meros 8,2%, em 1996.

A falta de um carro pequeno

A história mostraria que a ausência de um carro pequeno na sua gama de modelos – na contramão do mercado e de todos os outros fabricantes – foi a razão principal da queda da Ford, da qual a empresa só conseguiria se recuperar muitos anos depois, exatamente a partir do lançamento do menor dentre os carros pequenos – o Ka. Pode-se concluir que a crise da Ford foi, portanto, resultado de uma sequência de decisões gerenciais equivocadas tomadas pela matriz. Desde 1973, durante a Primeira Crise do Petróleo, falava-se em um Mini-Ford brasileiro; um protótipo chegou a ser analisado no Brasil, mas acabou por perder a prioridade; com o lançamento do Fiesta na Europa, em 1976, este passou a ser o produto cogitado pela Ford, até também ele ser abandonado, em 1980, ao ser escolhido o Escort como “o próximo médio-pequeno brasileiro“, dada a opção declarada da empresa “operar nas faixas mais altas do mercado, ficando menos sujeitas à flutuação da disponibilidade de crédito” do comprador.

Fiesta e Escort não eram projetos excludentes, mas complementares, e o abandono do projeto do carro pequeno foi um erro do qual a Ford aparentemente ainda não se arrependera em 1991. Tanto que, ao comentar seu próximo lançamento – um carro de luxo – a empresa analisava: “o forte da Ford, no Brasil, sempre foram os segmentos C e o intermediário, o que nos leva a insistir numa fórmula que deu certo“. Esta teimosia irritava a rede de revendas da marca que, através da sua associação, chegou ao ponto de patrocinar a preparação de um Escort com motor de um litro para provar à Ford ser uma alternativa viável e vendável; a iniciativa foi ignorada pela empresa.”

Fábrica de motores diesel

Em junho [de 1991] (…) a empresa anunciava “em caráter oficial e irrevogável” o fechamento, no início do ano seguinte, da fábrica de motores diesel de São Bernardo do Campo e a demissão de todos os seus 900 empregados (grande parte dos equipamentos viria a ser vendida para a China). Apesar de ser a fornecedora do motor titular da sua bem sucedida linha de caminhões Cargo, a empresa não hesitou em encerrá-la, alegando que seu principal mercado eram os EUA e que seriam altos demais os investimentos para atualizar tecnologicamente os engenhos a fim de atender à legislação ambiental daquele país.”

Efeitos negativos das importações

Ainda em janeiro o Real foi desvalorizado: mais uma vez, graças à ânsia globalizante da Ford (que deu origem ao baixo conteúdo nacional no Ka e Fiesta e às importações em massa da Argentina), foi ela a maior prejudicada entre os grandes fabricantes. (Sujeita ao mesmo impacto inesperado, imediatamente a Fiat decidiu transferir para o Brasil parte de sua linha argentina de veículos, aumentando conteúdo e produção nacionais; enquanto isso, a Ford suspendia por 17 dias a fabricação em São Bernardo e Taubaté e, um ano depois, ainda “pensava” na possibilidade de trazer para o Brasil a montagem do Escort.)

Caso Guaíba

No final de março [de 1999 a Ford foi notificada da] recusa do recém-empossado governo do Rio Grande do Sul manter o pacote de benefícios acordado entre a empresa e a administração anterior para a construção da nova fábrica de Guaíba, julgado lesivo à economia do Estado e ao povo gaúcho. Neste caso, a resposta da empresa foi rápida – e truculenta – exigindo o cumprimento do contrato e dando um ultimato ao governo do Estado: “nosso prazo termina às 8 horas do dia 16 [de abril]“; e ameaçava: “a Ford vai fazer valer os seus direitos; (…) não vamos sentar para renegociar o contrato; (…) os incentivos são absolutamente vitais e condicionantes para a manutenção do projeto no Rio Grande do Sul. (…) Queremos igualdade com a nossa concorrente GM“. A GM, que construía fábrica em Gravataí, foi igualmente pressionada, porém já tendo recebido quase 90% do contratado logo entrou em acordo com o Estado. A Ford, que se encontrava em situação oposta – tinha 90% a receber – foi absolutamente inflexível, recusando-se a abrir mão de qualquer benefício. O impasse foi criado e, em 28 de abril, a empresa anunciou a sua saída do Rio Grande do Sul.

Imediatamente foi reaberta a guerra fiscal entre diversas unidades da Federação para sediar a nova fábrica, saindo a Bahia “vencedora” do leilão de privilégios e benefícios lançado pela montadora. Para isto, contou com a preciosa ajuda do ex-governador da Bahia e então presidente do Senado Antônio Carlos Magalhães que, fazendo valer seu posto, fez baixar Medida Provisória prorrogando o prazo de habilitação da Ford ao Regime Automotivo expandido, encerrado desde maio de 1997, que previa benefícios fiscais adicionais para empresas interessadas em se estabelecer nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste. Além do corte de taxas e impostos federais previsto no Regime Automotivo e nas normas específicas para investimento na área da Sudene, a Ford também gozaria por até dez anos da postergação do recolhimento de contribuições estaduais e municipais; o terreno e infraestrutura para a usina, no município de Camaçari (anteriormente destinados à coreana Asia Motors), seriam doado pelos governo da Bahia. Mas tal espojamento ainda não era suficiente e a Ford imaginou um “custo-Bahia”, de US$ 500 por veículo, justificado pela distância existente entre a futura fábrica, o mercado e os fornecedores; mui oportunamente, a matriz de Detroit fez informar ao governo baiano e à União que não efetivaria o investimento caso não recebesse incentivos que compensassem o recém encontrado ônus. Magicamente, a capacidade fabril foi quase que duplicada (passou de 150 para 250 mil unidades/ano), elevando em US$ 50 milhões a “indenização” anual pela “má localização” da planta.

O atropelo das leis pelo presidente do Senado foi criticado pela oposição, pelo governador e deputados situacionistas de São Paulo e por alguns jornalistas econômicos, porém contou com total simpatia e boa vontade do Governo Federal e sua base política, que não descansou enquanto não viu encaminhada a solução positiva e a sansão final da Presidência da República à MP, em julho. A “vitória” da Bahia significou, em última instância, que um estado nordestino pobre, com baixo IDH e alto índice de analfabetismo contribuiria com muitas centenas de milhões de dólares para um empreendimento privado, propriedade de uma das maiores corporações norte-americanas e segunda empresa do mundo no setor.

Consumado o imbroglio da nova fábrica, ao invés de anunciar lançamentos, a Ford comunicou o fechamento, a curto prazo, da fábrica do Ipiranga, dada a sua localização em área urbana densamente habitada e a transferência da fabricação de caminhões e picapes para São Bernardo do Campo. (Enquanto isso, corria na Justiça o processo do Estado do Rio Grande do Sul contra a Ford, cobrando a devolução das parcelas do empréstimo já liberadas à empresa e do valor dos investimentos em infraestrutura realizados pelo governo. Somente em novembro de 2016 – 17 anos depois! – o processo seria concluído e o Estado ressarcido.)

O fato é que a extrema centralização das decisões nos EUA – comportamento tradicional na Ford exacerbado na fase “globalizante” da companhia –, foi a causa predominante da grande quantidade de decisões erradas e do quase naufrágio da filial brasileira. Nada mais se projetava no Brasil, e até a agência responsável pela publicidade da empresa foi trazida dos EUA. Na nova fábrica, por exemplo, desde a concepção das instalações à escolha dos veículos, do detalhamento dos processos à seleção dos componentes, tudo foi realizado e decidido no exterior, com a participação singela de alguns poucos brasileiros. A rigidez na definição dos fornecedores, obrigando-os a suprir diferentes unidades da empresa em torno do planeta, inviabilizou a presença de grande parte dos fabricantes nacionais, que ou tiveram que se associar a empresas escolhidas pela Ford ou perderam o cliente para firmas estrangeiras que nem sequer haviam ainda chegado ao país.”

Não ao carro “de entrada”

Ao longo de 2004 a produção consolidada da Ford subiu 26,4%, praticamente o mesmo que o crescimento nacional; sua participação, portanto, permaneceu igual à do ano anterior: 12%. Ainda assim, foi um resultado histórico – 278 mil veículos, recorde da empresa em seus 47 anos de operação no país como fabricante. (…) No entanto, voltavam a pairar nuvens cinzentas no horizonte: apesar de todos – da rede de revendas a executivos da empresa – sentirem a necessidade urgente de dispor de um carro “de entrada”, categoria que concentrava mais da metade das vendas de carros no país, a matriz reagia: “A matriz me deu a diretriz de gerar lucro“, afirmava Maciel [Presidente da Ford Brasil], e carros baratos não davam lucro; “para ganhar dinheiro“, a estratégia traçada nos EUA determinou que a subsidiária se concentrasse nos carros pequenos, porém não os “de entrada”, e só voltasse a investir quando a ociosidade das plantas recuasse para abaixo de 20%. Como se não bastasse, foram impostos novos cortes nos custos fabris e administrativos, inclusive em publicidade. Estaria a Ford brasileira prestes a “perder o bonde” mais uma vez?

Demora na tomada de decisões pela Matriz

O ano que terminava [2006] acendeu a luz amarela para a Ford. (…) O mercado interno de automóveis esteve razoável, com forte sinalização de crescimento e, apesar da valorização do real frente ao dólar, foi excelente o desempenho da empresa na exportação de caminhões. Mas o “estilo Ford” de administrar, centralizador, conservador e obsedado pelo lucro a qualquer custo, voltava a estrangular a subsidiária brasileira. Diante de uma concorrência extremamente dinâmica, suas reações eram sempre lentas, dependentes de posições reticentes e decisões demoradas da matriz: assim foi no lançamento tardio do motor bicombustível e, principalmente, do 1.0 Flex; assim estava sendo na demora da substituição do Ka, que jamais cumpriu o papel de “carro de entrada” da marca; assim seria com a decisão de expandir Camaçari, que havia mais de um ano operava acima da capacidade máxima e estaria despreparada para atender a explosão da demanda que estava para acontecer no país. Em consequência, sua produção total acabou por cair um pouco no ano, bem como as vendas internas dos seus carros melhor posicionados no mercado: o Fiesta, em 7ª posição, e o EcoSport, em 9ª; as vendas do Ka melhoraram bastante, graças à redução de preço, porém não impediu que passasse do 22º posto no ranking nacional. Resultado final: recuo da participação na produção nacional de automóveis e caminhões de 12,9 para 12,3%.”

Um retrato da Ford em 2008

Esta era a situação da Ford no limiar de 2008: quarto produtor nacional de veículos, com participação na casa dos 10%; terceiro em caminhões, em torno dos 20%; maior importador de automóveis entre os grandes fabricantes, correspondendo (em 2009) a 13,6% das vendas; e, desde o ano anterior, controlador da Troller. No segmento de automóveis, fabricava apenas três modelos pequenos (Ka, Fiesta e EcoSport) e importava três médio-grandes (Focus, Fusion e Edge); nas picapes, onde há tempos deixara de ser líder, fabricava um modelo (F-250) e importava outro (Ranger); também perdeu a liderança nos caminhões leves, onde dominava o mercado havia décadas. Fora-se o tempo da empresa ousada na política de investimentos: a subsidiária brasileira tornara-se apenas um peão na política global da companhia, cujos “acionistas” – encabeçados pela família Ford – perseguiam o lucro e o lucro, acima de toda e qualquer consideração sobre os benefícios que seus investimentos pudessem levar para os países onde estivessem instalados. Ao Brasil foi destinado o papel subsidiário de fornecedor de carros “de entrada”, pouco sofisticados, com acabamento “básico” – ainda que em versões ditas “de luxo” ou “esportivas” –, importando modelos de faixas superiores, “onde os lucros são maiores”.

Este papel secundário afetava diretamente o futuro da companhia, no país. Em fevereiro de 2008 o presidente mundial da Ford descartava a expansão da filial brasileira, avisando que o crescimento das vendas teria que vir pela redução dos custos (“o parque fabril tem ainda muito a render em produtividade“) – apesar dos muitos milhares de demissões já ocorridas em São Paulo e da existência da fábrica baiana, declaradamente “uma das três mais eficientes do mundo“. O presidente da subsidiária complementava: “já perdemos muito dinheiro no Brasil no passado“; a empresa “deve contar com geração interna para realizar investimentos“; é seu objetivo “equalizar a produção da América Latina” e “explorar ao máximo a capacidade de todas as suas unidades antes de ampliá-las“. Era a Ford estressando o conceito de globalização, quando muitos fabricantes começavam a relativizá-lo.

Em outros termos, a produção nacional não era o importante, mas o resultado global da corporação. Mais antiga montadora instalada no país, estaria a Ford assumindo seu desaparecimento como fabricante brasileiro? Informava-se que as próximas gerações da F-250 e do Fiesta seriam fabricadas no México, de onde viriam para o Brasil. Em contrapartida, a gama de produtos brasileiros era estreitada e sua exportação – por si só prejudicada pela taxa desfavorável do dólar – limitada à América Latina.”

 

 

A Ford prevê gastos de cerca de US$ 4,1 bilhões com o desmonte das operações brasileiras, pelo menos 60% deles destinados a compensações, rescisões e acordos. A empresa manterá sua sede administrativa para a América do Sul em São Paulo, o Centro de Desenvolvimento de Produto na Bahia e o Campo de Provas em Tatuí-SP, que “continuarão a trabalhar no desenvolvimento de tecnologias e produtos para a região e outros mercados globais“.

A fabricação de peças de reposição seria mantida por mais alguns meses; por compromissos previamente assumidos com o Governo do Ceará, a Troller operaria até o final de 2021.

Em tempo: a produção na Argentina não só será mantida como receberá novos investimentos e será incrementada.

 

 

 

 





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CARROS NACIONAIS EM 1915?

Descobrindo novos pioneiros de nossa indústria

setembro 2019

Os primeiros automóveis chegaram ao Brasil já entrado o século XX. De seis carros em 1903 e doze dois anos depois, o Rio de Janeiro, então Capital Federal e maior cidade do país, possuiria 615 em 1910. A frota foi crescendo lenta mas constantemente, ultrapassando 2.700 em 1914, aí incluídas três dezenas de ônibus e pouco mais de 260 veículos de carga. Automóveis eram então, no Brasil, elementos estritamente urbanos, já que estradas de rodagem eram inexistentes no país.

Foi no ano seguinte que surgiu Auto-PropulsãoRevista Mensal de Motorismo, publicada regularmente até 1921. Muito moderna e bem documentada para a época, estruturava-se em quatro seções – Automobilismo, Motociclismo, Aviação e Motorismo Náutico -, cada uma delas trazendo textos técnicos, informações sobre novidades e relatos sobre competições excursões e raids.

Além de reportar o lançamento de novos modelos europeus e norte-americanos, acompanhava o avanço do automóvel e do automobilismo em matérias que hoje  soariam bizarras, como “As buzinas dos automóveis e a lógica do seu emprego“, “Um novo engine-starter (aparelho de arranque para automóveis)“, “Como dois auto caminhões fizeram o serviço de 72 cavalos“, “A importância dos sinais no tráfego das ruas“, “Excursão à praia do Leblon“…

Desde seus primeiros números, Auto-Propulsão investiu em campanhas pela construção de estradas, acompanhando movimentos que nesse sentido surgiam em todos os Estados do país. A única estrada brasileira de então, a União-Indústria, entre Petrópolis e Juiz de Fora, não era trafegável durante o ano todo, e a campanha por sua pavimentação foi a primeira bandeira da revista; seus últimos números traziam, no rodapé, a legenda “Construa-se a estrada Rio-Petrópolis“.

Foi nas páginas de Auto-Propulsão (cuja coleção está disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional), que LEXICAR encontrou algumas preciosidades, que incluímos este mês em nosso portal: sete garages e oficinas cariocas que, em paralelo às suas atividades usuais, projetavam e construíam carrocerias para automóveis.

No início do século XX o termo “garage” (em francês, ainda não aportuguesado) não se referia a postos de combustível, mas a locais protegidos onde se guardavam automóveis, geralmente frotas de táxis (ou “carros de aluguel”, como continuaram a ser chamados até os anos 50). Com frequência o estabelecimento também vendia componentes de grande consumo (pneus e baterias, por exemplo), eventualmente fornecendo combustível – muitas vezes em latas, mais raramente por meio de bombas de abastecimento.

Dada a reduzidíssima quantidade de automóveis particulares existente no país até o final da década de 20, também se tornou costume a utilização de carros de aluguel para cerimônias – muitas vezes veículos especial e luxuosamente preparados -, que também utilizavam as garages como estacionamento.

A partir de 1914, com o início da I Guerra Mundial e as enormes restrições dos países em conflito à exportação de veículos e peças de reposição, muitos desses estabelecimentos passaram a fabricar carrocerias, de projeto próprio e construídas com materiais nacionais, para suprir chassis novos ou usados.

Concentradas na área central e na zona sul do Rio de Janeiro, mantiveram-se ativas como fabricantes durante os quatro anos de guerra. A partir de 1919, contudo, com a regularização das importações, a demanda por carrocerias avulsas minguou e a atividade das garages, como fabricantes, foi drasticamente reduzida, até praticamente desaparecer na década seguinte. (Outra consequência do conflito foi a mudança do perfil da frota brasileira: se, em 1913, quase metade das importações de veículos tinha origem da França e Alemanha, em 1917 94% deles chegaram dos EUA, virtual monopólio que se manteria por mais de três décadas.)

Foram as seguintes as oito oficinas e garages identificadas na pesquisa da coleção de Auto-Propulsão: Bianco & Costa, Fábrica Internacional, Garage Baptista, Garage Fiat, Garage Moreira, Garage Lancia, Oficina Aragão e Rodrigues & Silva. Todas elas ganharam página própria em LEXICAR, que você pode consultar clicando no nome de cada uma.

A elas deve se agregar a Garage Avenida, há tempos presente em nosso portal e também foco de Auto-Propulsão em duas edições de 1915. Mas não esqueçamos que, ao fabricarem em 1907 suas primeiras carrocerias para automóveis em São Paulo, é aos irmãos italianos Grassi que cabe o posto de patronos dos pioneiros da indústria automobilística brasileira.

 

[LEXICAR agradece a Jason Vogel – editor do caderno Carro etc, do jornal O Globo, e apoiador de primeira hora de LEXICAR – pela indicação desta preciosa fonte de informações sobre os primórdios da indústria automobilística brasileira.]

 

Criação da oficina Rodrigues & Silva na capa da edição de maio de 1916 da revista Auto-Propulsão.

 

 

 





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